A adoção de parcerias na habitação não é uma escolha simples. Seu sucesso dependerá se a população está entre os ganhadores.
Do Real Parque em São Paulo, é possível ver a Ponte Estaiada e os prédios envidraçados da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Erguida entre o Morumbi e a Marginal Pinheiros, essa era uma favela repleta de casas de madeira, com fiação exposta e com esgoto a céu aberto. Hoje, as 1.110 moradias originais da comunidade — ou do assentamento precário, como se diz no jargão urbanístico — não existem mais. Os barracos foram demolidos a partir de 2010 para darem lugar a condomínios residenciais novinhos em folha. Com áreas de lazer e serviços de coleta de esgoto e de lixo, a obra recebeu um generoso financiamento, vindo da Operação Urbana Consorciada (OUC) Faria Lima.
O projeto de urbanização do Real Parque não alcançou apenas resultados positivos. Moradores contam que, com as obras e a regularização fundiária do assentamento, as contas de luz e água, bem como as taxas de condomínio e as prestações mensais dos novos apartamentos pesaram tanto que se tornaram impagáveis para muitas famílias.
Isso sem falar no instrumento polêmico que são as operações urbanas. Em São Paulo, esse tipo de parceria público-privada permite que construtoras comprem o direito de construir dentro de um perímetro urbano. O valor dessa "compra" é arrecadado e aplicado pelo município em melhorias dentro do perímetro. A abertura de ruas, a construção de estações de metrô e a provisão de moradias para a população de baixa renda são destinos possíveis para o dinheiro. A urbanização do Real Parque foi financiada pela compra do direito de construir dentro da área da Operação Urbana Consorciada Faria Lima, instituída em 1995.
Muitos urbanistas criticam as OUCs por entenderem que elas criam áreas de investimento — e de lucro — para o mercado imobiliário em localizações da cidade em geral já bem servidas de infraestrutura urbana. Além disso, as obras financiadas por operações urbanas consorciadas como a Faria Lima já expulsaram milhares de famílias de bairros nos quais construtoras e incorporadoras começaram a investir. Ao não estimularem o desenvolvimento de regiões periféricas, que em geral não são localizações interessantes ao mercado imobiliário, as operações urbanas teriam ignorado essas áreas, que são as que mais carecem de investimentos públicos.
Pontos como esse levam a uma questão essencial: enquanto o mercado tem interesses privados e opera com meios privados, o Estado tem interesses públicos e opera com instrumentos públicos. Daí os potenciais conflitos na parceria entre mercado e estado nas OUCs.
Existem outros tipos de parcerias intersetoriais. O terceiro setor (representado por organizações como as ONGs), com interesses públicos e meios privados, também pode se aliar ao Estado e a atores do mercado para prover, por exemplo, moradias dignas.
O Fundo FICA é uma boa ilustração de um cenário ainda tímido, mas bastante promissor. Essa organização sem fins lucrativos adquire apartamentos subutilizados no Centro de São Paulo e os aluga a famílias vulneráveis por preços abaixo dos praticados pelo mercado. Imaginem se a prefeitura firmasse um convênio com organizações como o FICA, que poderia administrar um parque habitacional de locação para famílias de baixa renda? Essa parceria não poderia render bons frutos?
Outro exemplo que também tem potencial para se desenvolver é o Favela 3D, uma parceria da ONG Gerando Falcões com o governo do estado de São Paulo, a Prefeitura de São José do Rio Preto e com a iniciativa privada. Ainda em fase embrionária, o projeto ambiciona urbanizar uma favela inteira no interior paulista e torná-la uma comunidade sustentável e conectada ao mundo digital. Em um cenário de poucos recursos estatais, parcerias como essa poderiam ser uma saída interessante.
A adoção de parcerias intersetoriais na habitação não é uma escolha simples. Seu sucesso depende do tipo de parceria e do quanto o estado, o mercado e o terceiro setor podem ganhar. Não sejamos ingênuos: sempre haverá perdas e ganhos e não há nada de errado se todos ganharem. O problema acontece se a população sair perdendo. Como no Real Parque, cujo aumento no custo de vida das famílias foi um efeito social bastante negativo.
Os meios justificam os fins e os caminhos que as parcerias intersetoriais trilham importam na obtenção de resultados e de impactos positivos. Embora o Estado nunca deva deixar de prover à população, outros atores podem assumir responsabilidades sociais nas cidades brasileiras. A ver o que o futuro reserva.
Sobre o autor
Guilherme Formicki é doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de São Paulo e mestre em Planejamento Urbano pela Columbia University, em Nova Iorque. Nos Estados Unidos foi bolsista Lemann e ganhou o prêmio Charles Abrams pela dissertação com o maior comprometimento com justiça social.
Os artigos do quadro Colunas de Opinião não refletem necessariamente a opinião do Conexão Gestão Pública.
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